Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2115/15.1T8FAR-C.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Ao abrigo do atual regime jurídico do processo de atribuição da casa de morada de família, o pedido de atribuição da casa de morada de família, sustentado pelo disposto no artigo 1793.º do CC, deve ser apresentado no tribunal quer nos casos em que ali corre ou correu uma ação de divórcio/separação litigiosos (caso em que a ação será apensada a esta última), quer nas situações em que se verifique ab initio uma elevada improbabilidade de vir a ocorrer uma conciliação da vontade das partes no processo de atribuição da casa de morada de família, numa perspetiva de economia processual (princípio subjacente ao regime criado pelo D/L n.º 272/2001), e ainda que o divórcio/separação haja sido por mútuo consentimento.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2115/15.1T8FAR-C.E1
(1.ª Secção)
Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), autora na ação de atribuição da casa de morada de família deduzida por apenso à ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que lhe foi movida por (…), réu nos presentes autos, interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo de Família e Menores de Faro, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Fato, o qual indeferiu liminarmente a ação.
Na ação a requerente-recorrente pediu ao tribunal que proferisse sentença que constitua relação de arrendamento da fração melhor identificada nos autos e permita à autora o gozo da mesma mediante uma contrapartida pecuniária mensal no valor máximo de € 200,00, até que o filho de ambos atinja a idade de 25 anos ou até que esteja em condições de se sustentar pelos próprios meios.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«Atribuição da Casa de Morada da Família
Veio a requerente intentar ação de atribuição de casa de morada de família a correr por apenso ao processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Sucede que os autos de divórcio se encontram findos, tendo sido proferida sentença transitada em 18 de maio de 2016.
Assim e considerando as competências da CRcivil nesta matéria (DL 272/2001, de 13/10), forçoso será concluir que este tribunal, inicialmente, não é competente para tramitar os autos.
Vejamos:
Pode ler-se no art.º 5º do mencionado diploma:
1.O procedimento regulado na presente secção aplica-se aos pedidos de: a) Alimentos a filhos maiores ou emancipados;
b) Atribuição da casa de morada da família;
c) Privação do direito ao uso dos apelidos do outro cônjuge; d) Autorização de uso dos apelidos do ex-cônjuge;
e) Conversão de separação judicial de pessoas e bens em divórcio.
2 - O disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos no âmbito da mesma ação judicial, ou constituam incidente ou dependência de ação pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil.
Neste sentido, veja-se “O Divórcio e Questões Conexas”, Tomé d´Almeida Ramião, Quid Juris, Sociedade Editora, 2009, pag.125: “Ora, se o pedido for deduzido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, entende-se que, por não ser cumulável com outro pedido, nem constituir incidente de ação pendente, deverá ser apresentado na conservatória. E isto porque esse procedimento (tendente à formação de acordo das partes) a seguir na Conservatória do Registo Civil é obrigatório e não facultativo, ou seja, o requerente que pretende essa atribuição não tem direito de opção”.
Assim em face do exposto, indefiro liminarmente a ação. Custas pela requerente que se fixa no mínimo legal. Notifique e registe.
Faro, d.s.».
I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1 – Nos termos do artigo 1793.º do Código Civil (na versão introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro), o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos ex-cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja bem comum, quer seja bem próprio de um deles.
2 – O artigo 990.º do CPC de 2013, com os seus números 1, 2, 3 e 4, introduzido pela Lei da Assembleia da República n.º 41/2013, de 16 de junho, e, designadamente, o seu número 1 estipula que aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
3 – O número 2 do citado artigo 990.º do CC estabelece que o Juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação, a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos números 1, 5 e 6 do artigo 931.º (do CPC), sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º (do CPC).
4 – O número 4 do artigo 990.º do CPC, acima referido, determina que se estiver pendente ou tiver ocorrido ação de divórcio ou de separação, o pedido é deduzido por apenso (a esta ação, entenda-se).
5 – Com “Tiver corrido ação de divórcio”, o legislador só pode ter querido dizer que se tiver ocorrido ação de divórcio cuja sentença haja transitado em julgado, como é o nosso caso, o pedido de atribuição da casa de morada de família, formulado por um dos ex-cônjuges contra o outro, tem que ser, e só pode ser formulado por apenso à ação de divórcio.
6 – A apelante veio intentar (por apenso à ação de divórcio) ação para atribuição da casa de morada de família, bem próprio do outo ex-cônjuge, peticionado que o tribunal constitua relação de arrendamento entre ela e o ex-marido, relativamente à casa de morada de família, nos termos e ao abrigo do artigo 1793.º do Código Civil e da ordem pública da família.
7 – Foi em obediência ao número 4 do art. 990.º do CPC, por ter corrido ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, intentada pelo então marido, com sentença que decretou o divórcio já transitado em julgado, que a apelante intentou a presente ação
8 – O tribunal recorrido “indeferiu liminarmente a ação” por entender não ter (ainda que de início) competência material para a presente ação, decidindo que a competência é da Conservatória do Registo Civil, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2772001, de 13 de outubro.
9 – “Indeferir liminarmente a ação”, por se julgar incompetente, desemboca, ainda que não se diga na decisão recorrida, numa absolvição da instância que, entre outros dá direito à apelante a interpor este recurso.
10 – O CPC de 2013 foi introduzido na ordem jurídica pela Lei da Assembleia da República n.º 14/2013 e teve início de vigência em 1 de setembro de 2013, como decorre do artigo 8.º dessa lei, e desde este início de vigência os teores dos números 1, 2, 3 e 4 do artigo 990.º do CPC de 2013 não sofreram qualquer alteração, nem revogação, nem expressa nem tácita.
11 – Já o Decreto-Lei (do Governo) número 271/2001, de 13 de outubro teve o seu início de vigência em 1 de janeiro de 2002, como decorre do seu artigo 22.º, não tendo, desde o início de vigência, o seu artigo 5.º sofrido qualquer alteração ou revogação expressas.
12 – As disposições invocadas pela decisão recorrida, para se declarar incompetente em razão da matéria e concluir que a apelante esta obrigada a intentar o pedido de atribuição da casa de morada de família na Conservatória do registo Civil, não tem aplicação ao caso, por terem sido tacitamente revogadas pela Lei da Assembleia da República que introduziu o CPC de 2013, e com este teor do artigo 990.º do CPC, especificamente o número 4 deste artigo 990.º.
13 – A lei da Assembleia da República, que introduziu o CPC de 2013, por ser mais recente do que o Decreto-Lei invocado na decisão recorrida, e por aquela ser superior na hierarquia das leis, revogou tacitamente o que este Decreto-Lei estipula no artigo 5.º, n.º 1, alíneas b), conjugado com o seu número 2, relativamente ao pedido e respetiva tramitação de atribuição da casa de morada de família.
14 – A legislação invocada pela decisão recorrida para “indeferir liminarmente a ação” não tem aplicação ao caso que lhe foi submetido.
15 – Resulta do artigo 990.º, n.º 4, do CPC de 2013 que, tendo corrido ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, entre a apelante e o seu ex-marido, agora demandado na ação para atribuição da casa de morada de família, e tendo aquela terminado com sentença que decretou o divórcio, já transitada em julgado, a apelante era obrigada, sem opção, a intentar a presente ação para atribuição da casa de morada da família por apenso à ação de divórcio.
16 – A decisão recorrida violou o disposto no artigo 990.º, n.º 4, do CPC de 2013, e está o tribunal recorrido obrigado a observar os termos e o rito dos números 1, 2, 3 e 4 deste preceito, razões para que a decisão recorrida deverá ser revogada e ordenado ao tribunal recorrido que obedeça ao disposto no artigo 990.º do CPC em vigor.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, deverá o presente recurso ser considerado procedente, e ser revogada a decisão recorrida, ordenando-se ao tribunal recorrido o prosseguimento dos autos em obediência ao rito estabelecido nos quatro números do artigo 990.º do CPC 2013».


I.3.
O recorrido não apresentou resposta às alegações.
O recurso interposto pelo autor foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A única questão que cumpre apreciar consiste em saber se a presente ação de atribuição de casa de morada de família deveria ter sido intentada na conservatória do registo civil (como decidiu o tribunal recorrido) ou, ao invés, no tribunal, por apenso à ação de divórcio sem consentimento dos cônjuges.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
Decorrem dos autos os seguintes factos com relevo para o presente recurso:
1 – Correu termos no Juízo de família e Menores de Faro, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro um processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, movido por (…) contra (…), no âmbito dos quais foi decretado, por sentença já transitada em julgado (em 18.05.2016), o divórcio entre as partes.
2 – Por apenso à referida ação, a apelante intentou ação de atribuição da casa de morada de família.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
A presente ação de atribuição da casa de morada foi intentada ao abrigo do artigo 1793.º do Código Civil, na decorrência da dissolução do vínculo matrimonial entre a recorrente e o recorrido, ocorrido no ano de 2016.
Pretende a autora/recorrente que seja constituída uma relação de arrendamento entre ela e o requerido/recorrido tendo por objeto um imóvel que é bem próprio do segundo.
A recorrente insurge-se contra a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, o qual indeferiu liminarmente a petição inicial por considerar que, pelo menos de início, é a conservatória do registo civil a entidade competente para a ação atentas as suas competências previstas no D/L 272/2001, de 13/10.
Vejamos se lhe assiste razão.
Previamente se dirá que nos termos do artigo 1793.º do Código Civil o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, ainda que esta seja um bem próprio do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do CPC, a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, exceto quando a lei determine o contrário. É a garantia do direito de ação, componente do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República.
Os tribunais não têm o monopólio da resolução dos conflitos. No particular domínio que nos ocupa, o D/L n.º 272/2001, de 13 de outubro, veio, designadamente:
(i) atribuir competência decisória exclusiva ao conservador de registo civil em matéria de separação e divórcio por mútuo consentimento (excetuando os casos de conversão de divórcio litigioso)[1]; e
(ii) operar a transferência de competência para as conservatórias de registo civil em determinados processos de jurisdição voluntária desde que se verifique ser a vontade das partes conciliável, e sem prejuízo da remessa para o tribunal quando haja oposição do requerido.
Com efeito, o D/L n.º 272/2001 contempla um procedimento perante o conservador de registo civil tendente à formação de acordo das partes, o qual é aplicável aos pedidos enunciados no n.º 1 do artigo 5.º (entre os quais a atribuição da casa de morada de família a um dos dois ex-cônjuges – cfr. alínea b)). Tal procedimento inicia-se com a apresentação de um pedido entregue na conservatória, fundamentado de facto e de direito, com indicação das provas e junção de prova documental (cfr. artigo 7.º), após o que se seguirá a citação do requerido para deduzir oposição, juntar e indicar provas (artigo 7.º, n.º 2); se for apresentada oposição, é marcada uma tentativa de conciliação (artigo 7.º, n.º 3) e se se frustrar o acordo, o processo é remetido ao tribunal judicial competente (artigo 8.º).
O procedimento previsto no artigo 5.º comporta, portanto, duas fases: a primeira, materialmente administrativa, desenrola-se na conservatória e visa a obtenção de um rápido consenso, seja por formação de acordo seja por revelia operante; a segunda, após a junção da oposição do requerido, não se conseguindo acordo na conservatória, com a remessa do processo para o tribunal, de natureza contenciosa, formalmente judicial – assim, Ac. STJ de 31.05.2011, processo n.º 2563/09.6TMPRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
O n.º 2 do citado artigo 5.º preceitua que:
«O disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos da mesma ação judicial, ou constituam incidente ou dependência de ação pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil» (negrito nosso).
Como conciliar este preceito com o regime previsto no Código de Processo Civil relativo à atribuição da casa de morada de família? E será que a última parte do referido preceito se aplica ainda que a ação de divórcio/separação esteja finda?
Quando o D/L n.º 272/2001 entrou em vigor (01.01.2002; cfr. artigo 22.º), a ação especial de atribuição da casa de morada de família estava regulada no artigo 1413.º do CPC, com a redação emergente do D/L n.º 329-A/95, e cujos n.ºs 1 e 4 tinham a seguinte redação:
«1- Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transferência do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 84.º do Regime do Arrendamento Urbano, deduzirá o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
(…)
«4 – Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou de separação litigiosos, o pedido é deduzido por apenso» (negritos nossos).
Da conjugação do referido artigo 1413.º com o artigo 5.º, n.º 2, do D/L n.º 272/2001, de 13.10 resultava que o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos do artigo 1793.º do CC era necessariamente dependência da ação de ação de divórcio/separação, pendente ou finda, quando aquela fosse/tivesse sido litigiosa. Ou seja, a ação de atribuição da casa de morada de família tinha de correr no tribunal judicial, não se justificando, pois, que o processo se iniciasse na conservatória do registo civil com vista à obtenção de um acordo. O que, à luz da ratio do regime criado pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, bem se compreendia pois que nestes casos em que o divórcio havia sido litigioso, a grande improbabilidade de acordo quanto a matérias decorrentes da dissolução do vínculo matrimonial, justificava que o processo se iniciasse logo junto dos tribunais, a fim de evitar um procedimento inútil que a própria lei proíbe (cfr. artigo 130.º do CPC). Ao invés, nos casos em que o divórcio houvesse sido decretado na conservatória do registo civil – necessariamente divórcios por mútuo consentimento, nos termos previstos no artigo 12.º do D/L n.º 272/2001 – então o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos previstos no artigo 1793.º do CC, deveria iniciar-se na conservatória competente; efetivamente, se o divórcio/separação já hajam sido consensuais, a probabilidade de obtenção de um acordo entre as partes interessados em questões relacionadas com vida familiar justificava que os respetivos processos se iniciassem em instâncias que não os tribunais, privilegiando-se a celeridade, mas sem prejuízo, como supra assinalámos, da remessa do processo para os tribunais existindo oposição de qualquer interessado.
Não existia, portanto, qualquer colisão entre o referido artigo 1413.º do CPC e o artigo 5.º do D/L n.º 272/2001, de 13.10 na medida em que este último diploma não subtraiu à competência dos tribunais a apreciação dos pedidos de atribuição de casa de morada de família nos casos em que também pelos tribunais tivesse corrido a ação de divórcio/separação litigiosos – assim, Ac. RE de 20.10.2016, processo n.º 559/14.5T8TMR-A.E, relatora Maria João Sousa e Faro, consultável em www.dgsi.pt. Ou seja,
Abre-se aqui um parêntesis para discorrer sobre a ratio do D/L n.º 272/2001, na medida em que aquela constitui um importante subsídio para determinar o sentido do referido artigo 5.º, n.º 2. E essa ratio surge evidenciada no Preâmbulo daquele diploma legal, onde se lê: «importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciam verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efetivamente a uma reserva de intervenção judicial. Assim, aproxima-se a regulação de determinados interesses do seu titular, privilegiando-se o acordo como forma de solução e salvaguardando-se simultaneamente o acesso à via judicial nos casos em que não seja possível obter uma composição pelas próprias partes».
O atual artigo 990.º, n.º s 1 e 4, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Atribuição da casa de morada de família, prescreve que:
«1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito»
«4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 1793.º do Código Civil é deduzido por apenso àquelas ações» (negrito nosso).
Confrontando o antigo artigo 1413.º do CPC com o atual artigo 990.º, verifica-se que a evolução legislativa do regime jurídico da ação de atribuição/alteração da casa de morada de família foi no sentido de alargamento da competência do tribunal. Com efeito, o atual artigo 990.º, n.º 4, do CPC para além de manter a competência do tribunal para conhecer dos pedidos de atribuição de casa de morada de família (e de alteração) quando o divórcio aí tenha sido decretado (e não apenas quando o processo aí estiver pendente) passou a abranger as situações em que os pedidos de atribuição da casa de morada de família surgem na decorrência de processos de divórcio (ou de separação) por mútuo consentimento, mas em que não existe consenso quanto à questão da atribuição da casa de morada de família, na medida em que suprimiu o adjetivo “litigioso” – assim, Ac. RE de 20.10.2016, supra citado.
A história evolutiva do regime jurídico conjugada com a própria ratio do sistema criado pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, lança luz sobre o sentido que deve ser atribuído ao artigo 5.º, n.º 2, do D/L n.º 272/2001, de 13.10, preceito que foi invocado pelo tribunal recorrido para sustentar o indeferimento liminar da petição inicial; assim, e sempre numa perspetiva de economia processual (princípio subjacente ao regime criado pelo D/L n.º 272/2001, como supra assinalámos), o pedido de atribuição da casa de morada de família, sustentado pelo disposto no artigo 1793.º do CC, deve ser apresentado no tribunal quer nos casos em que ali corre ou correu uma ação de divórcio/separação litigioso (caso em que a ação será apensada a esta última), quer nas situações em que se verifique ab initio uma elevada improbabilidade de vir a ocorrer uma conciliação da vontade das partes no processo de atribuição da casa de morada de família, ainda que o divórcio/separação haja sido por mútuo consentimento.
No caso sub judice, o pedido de atribuição da casa de morada de família surge na decorrência de um processo de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges que foi decretado por sentença já transitada em julgado.
Por conseguinte e em face do exposto, decorre que bem andou a recorrente ao propor a presente ação no tribunal, por dependência da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Destarte, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que convoque os ex-cônjuges para a tentativa de conciliação prevista no artigo 990.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Procede, pois, a apelação.

Sumariando:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente a Apelação, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por despacho a convocar os ex-cônjuges para a tentativa de conciliação a que alude o artigo 990.º, n.º 2, do CPC.
Sem custas de parte porque o apelado não apresentou resposta ao recurso.
Notifique.
Évora, 27 de maio de 2021
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato

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[1] O D/L n.º 163/95, de 13.06 já tinha conferido competência ao Conservador do Registo Civil para decretar o divórcio por mútuo consentimento nas situações em que o casal não tem filhos menores ou, tendo-os, o respetivo poder paternal se mostre judicialmente regulado (cfr. artigo 1773.º do CC).